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sábado, setembro 04, 2004

 
O desdém e sua gênese

"Você é foda. A gente tá aqui faz quatro anos e você nunca foi a um churrasco que a turma organiza", diz um rapaz gordo e sardento, aos seus 15 anos de idade. "A gente quem, cara pálida?", responde o outro garoto, mais esguio e arredio, um real e setenta centavos no bolso. Era o início de uma tarde no verão de 1996 em uma mal acabada escola municipal da capital paulista.

"Sabe que eu te detesto às vezes?", ouve o mesmo menino, no mesmo dia, poucas horas depois, setenta centavos no bolso. "Mas por que isso?", ele pergunta ao garoto pobre e de pele levemente parda, viciado em corrida de cavalos e em cocaína. A resposta é seca. "Nós dois temos cinco pessoas na família. E quando você vai à padaria, compra dez pães. Eu só compro cinco." Limbo. Raiva. De si mesmo.

"Tio, você me arranja um real para eu comprar um pacote de biscoitos? Eu quero visitar minha família, tenho a passagem, mas só estou com 30 centavos para comer na estrada", reclama o garoto do churrasco e dos dez pães. O homem, alcoolizado como de costume, não responde e cai no sono. Dez horas, oito balas de hortelã e três cariocas barulhentos depois, chegou-se ao destino do fim de semana. Agonia.

"Volto para o Rio amanhã e passo no restaurante de vocês antes de ir embora." Mas a garota loira, pele clara demais para alguém vindo do Leblon, dois anos mais nova e próxima havia cinco meses não apareceu novamente. Nem ligou ou escreveu. Apenas se foi. Nunca mais. Tristeza.

"Se quiser alguma coisa na vida, vai ter de estudar das 7 da manhã às 7 da noite", diz um ex-corretor de imóveis e câmera de festas infantis, pai nas horas vagas. O moleque vai além: não chega em casa antes das 22 horas. Todos já dormem. Quando ele se levanta, continuam dormindo. Até hoje. Das 7 da manhã às 7 da noite. Impaciência.

"Desisti porque você falou uma besteira sobre mim", afirma taxativa uma garota magra, a quem poucos prestavam atenção. "Você está é com medo de ficar comigo e sabe que não falei nada", responde ele, depois de meio ano de espera. Vitória do medo. Frustração.

"Decidimos que é melhor você trabalhar sozinho, sem o seu amigo, porque funciona melhor para todos", disse a dona de escola, rasgando um contrato firmado sem consultar os signatários. Todos quem? A casa do amigo não foi reformada e o pai do tal rapaz não tomou seus remédios em dia. Ambos decidem pela demissão e pelo atraso nos planos acadêmicos. Resginação.

"Eu não quero mais. Você não cuida de mim", conta a jovem ao cara que desejava; como suprimento paterno, disfarçado de namorado. Passam os meses e ela muda e desmuda de idéia. Até ganhar presentes em seu aniversário. Uns vêm do rapaz, que dá o que pode. Outros, de um outro, que dá o que quer. A oportunidade começava a fazer o ladrão. Aceitação.

"Mande outro para ele também", diz o já não tão menino ao colega que havia encontrado seu pai dias antes. O velho não via o filho havia um mês, e tampouco se preocupara em ligar para ele e preferiu mandar um abraço em nome de um terceiro. Desdém. Missão cumprida.

E como diria um desses compositores das antigas modernas:

As costas, marcadas
As mãos, calejadas
E a esperteza que só tem quem tá cansado de apanhar.


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