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domingo, junho 04, 2006

 
O dia em que o morro subiu

Era uma quarta-feira na qual as bolsas de valores em todo o mundo despencavam. Autoridades sanitárias indianas decretavam estado de atenção para evitar suicídios em massa de homens que minutos antes eram milionários. Os investidores globais se desesperavam: fuga em disparada dos títulos de dívida de países emergentes, rumando aos menos arriscados papéis do governo norte-americano. O dólar disparava, deixando atônitos os que não contavam com a turbulência para viajar ao exterior. Para uns, sinal de tempos caóticos. Para os muitos os moradores do Jardim Panorama, uma favela pacífica da zona sul de São Paulo, não fazia a menor diferença. Cagavam e andavam.

Saindo do pé de um morro com poucas casas de alvenaria, perto dos prédios de empresas grandes como Microsoft e Citibank, e tendo acima a área do que será o mais luxuoso condomínio de São Paulo em alguns anos -- a cobertura custará R$ 10 milhões --, a comunidade Real-Panorama, dos habitantes das favelas Jardim Panorama e Real Parque, decidiu convidar a si mesma e partir para a festa dos futuros vizinhos naquela mesma quarta-feira lá no topo da escalada.

(Não que os ricaços tivessem má vontade com aquela gente simples e, por isso, não tivessem mandado belos cartões cobrando-lhe a presença privilegiada na bela comemoração. Na verdade, nem sabiam que o miserê estava tão perto: não havia nenhuma favela na maquete do projeto e o muro de dois metros de altura em torno da propriedade dava conta de esconder o resto.)

Mas qual era o motivo de essas pessoas terem tomado a decisão de aparecer onde não foram chamadas? Não esqueçamos do mercado, que responde a muitas perguntas com uma lógica invejável. Teria algo a ver com as agitações em Wall Street, preocupada com as incertezas sobre as taxas de juros nos Estados Unidos para os próximos meses? Passava perto das inquietações dos índices europeus, que tinham inchado além do razoável devido a resultados bons, mas nem tanto, de empresas do continente? Tem relação com os preços recorde do petróleo, culpa daquele maluco do Irã?

"O problema é que eles levantaram o muro", diz um dos líderes dos moradores. "Cercaram tudo, nem sabem que estamos aqui há décadas. Já levantaram isso faz quase dois anos e só vieram falar com a gente hoje. Mas só vieram porque souberam que a gente ia fazer esse protesto. Queriam evitar, mas não desistimos." Aquele foi o segundo protesto da história da comunidade do Jardim Panorama. O anterior juntou cerca de 50 pessoas, contou outro líder do movimento, contra a transferência de um dentista do posto de saúde da região.

Mas além de protesto, havia também festa! Difícil foi os cerca de 300 moradores chegarem até lá, com os objetivos singelos de serem vistos e ouvidos pelos futuros vizinhos, que já eram entretidos com champagne Möet Chandon e quitutes cujos nomes os mais simplórios habitantes do pé do morro nem conseguiam pronunciar.

Depois de mais de uma hora, mil metros de subida, dois encapuzados armados de fuzil, uma linha de seguranças mal encarados e pelo menos um repórter superfashion, os moradores, enfim, chegaram ao cume da rua Arnaldo Petrella, bem diante do bunker onde acontecia a celebração -- faltava bastante tempo para o showzinho intimista de Caetano Veloso, aquele que já cantou ter nascido para ser Superbacana.

Desses 300 que ali se fizeram ver para os donos de automóveis Mercedes, BMW, Lexus, Land Rover, apenas uma pôde encarar os futuros vizinhos dentro da festa na qual só estavam funcionários e aqueles para quem o bolo brasileiro já cresceu. O nome dela é Karina, tem 19 anos e quer ser advogada:

"É muito difícil vir aqui falar com vocês", disse ela já perto das 23 horas, sem deixar de ouvir o entusiasmo dos companheiros vindo do lado de fora, vencedores do duelo contra o frio e contra o mau humor, mas barrados pela falta de convite.

Leu um texto preparado: era essa a condição para o fim do protesto, para que todos pudessem ouvir. Não havia no papel nenhum pedido especial, nada estranho a quem conhece minimamente as leis, desta ou de outra cidade. Mesmo assim, dentro e fora da pequena fortaleza, houve muitos aplausos no final. Clima de alívio definitivo.

Assim que largou o microfone, Karina fartou-se de docinhos e salgadinhos, oferecidos e aceitos de bom grado.

Sob contrato, Caetano resolveu começar com um verso muito preciso: alguma coisa acontece no coração dele. Não é de se duvidar.

Na festa, os casais se abraçam para ouvir o cantor, talvez sentindo que compartilharam de um orgulho estúpido pelos pobres do país.

A choldra preferiu ir logo embora, pacífica e cantante como ao chegar, já que todo mundo acorda cedo para chacoalhar no ônibus a caminho do trabalho.

Aos seguranças e encapuzados, resta apenas observá-la ao descer o morro que tinha subido à espera de reconhecimento e de dias melhores.

Mas apesar de tudo isso, o mercado decidiu continuar tenso. Não tem jeito: ele é sensível a qualquer mudança brusca. Sem contar que é indiferente a todos os morros. Em especial aos que tentam subir.

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