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quarta-feira, abril 27, 2005

 
Escovar os dentes

Se Deus realmente existisse, ele teria feito os dentes da mesma forma que concebeu as unhas: usa, dá uma cortadinha com o alicate e está pronto. Mas não, a porcaria da natureza tinha de fazer tudo errado. Temos é um monte de cotocos de ossos saltando da boca e nos obrigando a tratar deles como se estivéssemos fazendo algo realmente importante, como engraxar os sapatos ou tirar as remelas dos olhos.

Não tivesse a providência se encarregado de arquitetar tão falho sistema digestivo, não teria de ouvir a nefasta figura de nome Tomatsuro escovar os dentes por ininterruptos 15 MINUTOS no banheiro do lugar onde trabalho. O que um cara desse tem na boca? Um rato morto? Escova tanto porque beija traveco de madrugada? Por que dorme com a própria mãe? Por que come salmão escondido no café-da-manhã? Ah, vai se lavar!

O sábio Pastor Dedini sempre nos lembrou, em suas sacrossantas palestras, que escovar os dentes, os cabelos, qualquer coisa em excesso é iconoclasta e pusilânime. Ainda mais se for entre os orientais neo-pentecostais, como o Tomatsuro. Só posso dizer que nunca duvidamos disso.

Por isso, não hesitamos em condenar o Pastor Jebedias quando escorria sangue de sua boca, de tanto afinamento que o rapagote tinha com a escova bucal. Não havia discipulo do grande mestre que não repreendesse Jebedias, pastor novo, por sua falta de distância em relação às escovas de dente.

Mais tarde, ele cairia nos hamburgueres, cds do Los Hermanos, lasanhas verdes e shows de 1o de maio. Irrecuperável. Mas se assim tiver de ser com aquele japonês irritante, que o seja o quanto antes. Quem sabe em tempo de ele não começar a limar os próprios dentes durante a escovação.

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sábado, abril 09, 2005

 
Despertencimentos

“Foi VOCÊ que ensinou o menino a ler?”, perguntou a diretora da escola de pré-primário a uma de suas serventes. Tinha sido. Maria não deveria ter voltado à profissão na qual começou a trabalhar aos 12 anos, quase duas décadas antes, na distante Gurupi, no estado de Goiás. Preferia ficar em casa e continuar alfabetizando o primeiro de seus três filhos, então com quatro anos de idade. A geladeira vazia não deixou.

Usar um par de tênis conga vermelho, impecável, e uniforme branco e vermelho, ainda que quase sempre surrado pelas brincadeiras de rua: eram as únicas exigências que me eram feitas naquela época. Lições de casa eu as tinha com minha mãe. As sugeridas pelas escola eram freqüentemente deixadas para segundo plano. Nunca fui punido nem cobrado por dar de ombros para as tarefas passadas pelos professores. Relevavam. Não sabiam como lidar com um aluno já capaz de ler e escrever algumas bobagens.

“Não tem motivo pra você vir aqui. Já tentaram uma bolsa pra você em alguma daquelas escolas boas?”, disse a tia Amanda, quem se importa com sobrenome?, depois de me presentear com o inspirador livro “O Cofre do Tio Onofre”. “Eu gosto daqui. Os meus amigos estão aqui, não quero ficar só em casa”, respondi (ou me lembro de ter respondido). Fiquei. Mais três anos, fazendo amigos e me alimentando.

Ao entrar no ensino fundamental, fui matriculado em outra escola da região, igualmente pobre. Uma que levava o nome de um jornalista, José Maria Lisboa. Abraçaria a profissão mais tarde. Daqueles anos até entrar no ensino superior, passaram-se mais de 15 anos.

Hoje já posso frequentar lugares mais bem apessoado, tenho a opção de fazer quantas refeições por dia quiser e convivo com pessoas que sabem lidar comigo - e com quem também estou aprendendo a lidar. Minha mãe não mais precisa fazer faxina nem cozinhar para garantir a sobrevivência da família. Os livros que leio têm maior complexidade, embora não contem com a mesma mágica de "O Cofre do Tio Onofre".

Nada disso, no entanto, minimiza a sensação contínua de despertencimento. O motivo é simples: uma pessoa pode até sair do gueto, mas nunca será capaz de tirá-lo de dentro de si.

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