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sábado, maio 29, 2004

 
TRAIR E GOSTAR É SÓ DESMISTIFICAR

Ninguém deve ser fiel a nada. Esta frase estaria inapelavelmente correta se não fosse a exceção. Qual seja, a única fidelidade possível, a saudável e a vital, é à própria consciência. Fora e dentro da consciência, o homem deve ser aquilo que pensa e deseja. Deve ser fiel a si mesmo. Não às ilusões que se erguem por obra humana.

A culpa pela traição vem das ilusões que os homens criaram ao longo da História. (Traição é uma palavra que mistifica; se existe, ela aparece em todas as cores quando o peso da consciência nada vale). Inventaram o pecado, Deus, o amor venal e proprietário, a vida após a morte. Nunca se poderá aceitar uma mulher sendo dominada por um homem, e vice-versa, somente porque um dia regulamentaram o casamento de papel passado. Quantas vezes alguém já não abafou o que sentia diante de outro alguém devido ao temor social. Em paz com a sociedade, em batalha consigo mesmo. Que espírito altruísta mais iludido.

Pior que o casamento de cartório – aí também se inclui o de religião – só mesmo o conceito de virgindade. Para unir-se ao sexo oposto, a mulher tem de estar vaginalmente intacta. Um hímen muda tudo – há até quem rejeite na noite de núpcias por considerar a mulher desvirginada uma mulher pária, impura etc. etc. (Mal sabem que nem toda mulher tem hímen complacente). Que crueldade. Nada de cristão nisso. Apedrejar um ser acusado de adultério é que é o pecado. Cuspir numa mulher sem hímen é que é digno de ir ao inferno. Tudo se inverte com as mistificações, que servem a um poder. Desnudada a estrutura do que é proibido, chega-se à conclusão de que a proibição beneficia uns poucos contra a maioria.

Cada qual tem de assassinar a mistificação pela qual se sente impedido de realizar à plenitude uma paixão. Como é maravilhoso estar apaixonado. Como é bom agitar o marasmo do cotidiano, ter na barriga o friozinho e no corações as palpitações. Como é bom ficar disperso e obsessivo. Estes os estados da paixão, que aumentam à medida que a proibição se faz mais grave e exigente. Estar de bobeira, refém do coração e do desejo, isso falta ao homem, a esta sociedade do acúmulo incessante e insatisfeito de bens. Virtudes existem exatamente em dar gasolina ao fogo da paixão. Poderia ser lenha, mas se exige a gasolina que é muito mais cara. Na paixão, como no amor, há de existir desprendimento. E coragem. E respeito ao desejo.


Hímen complacente. Anat. 1. O que não se rompe à passagem do pênis.


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sexta-feira, maio 21, 2004

 
OS ATORES ESTÃO NAS RUAS

Sobra-lhes a expressividade. A educação durante a curta vida os privou do verbo. Quem compensa a privação é o corpo, em elásticas e engraçadas atuações. E há quem pague caríssimo por um curso de teatro para ser um artista sofrível no palco. Lógico, não teve aula com os mestres. Eles estão nas esquinas, são os meninos de rua.

Os passantes tendem a correr dos mal vistos e vestidos garotos que perambulam por aí. Se prestassem mais atenção, veriam que, além de ameaçar a integridade dos burgueses apressados, os sem-família e casa têm a ensinar como usar o corpo como meio de expressão. Se lhes dessem aquelas altas pernas de pau para fazer propaganda de filtros de água, eles seriam os mais engraçados, graça que tanto aumenta na medida em que tiverem um gramofone e a cara pintada à palhaço. E como são sinceros – quando xingam e se exaltam estão a comportar-se como muita gente queria. Sinceridade comparável à da Kátia Nogueira de Mello. Além de tresloucada, a sinceridade de Kátia é desconcertante, apaixonante.

Os malandros do futuro, que vão povoar as telas de cinema, com filmes sobre presídio e favela, estão a tornar-se fetiche midiático. Carandiru, o filme, o livro, ou o documentário, nasceram todos nas ruas, nasceram na malandragem que solta o corpo, porque o verbo é pouco, embora muito expressivo e enfático. Uma palavra mal usada, nesse mundo, vale uma vida viva ou transformada em eterna, assim no inferno como no céu. E o motivo de tanto interesse é o jeito teatral que eles adquirem na rua, na dureza com os outros, com a vida, com a rejeição. O motivo para estar em pauta é a busca da verdade neste mundo de contrafações.

Carregar as gírias com gestos, caretas e sons se torna um espetáculo a céu aberto. E querem realizar a arte de avivar histórias em lugares fechados e pagos. Na calçada é que estão os professores. Aprendizes, lembrem-se de que ao sair da escolinha, ao sair do falso conforto do lar, vocês vão se deparar com a vida e tudo o que de roldão ela traz, o que nunca será pouca coisa para uma mente arguta.

Quando um passante perceber que lhe tungaram a carteira ou o querem assaltar, deve ele proceder de forma a fazer um trato. Já que é inevitável perder seus bens, exija-se em troca uma aulazinha de teatro. No mundo de corpos reprimidos, os ensinamentos dos malacos mirins seriam um infalível elixir. Que os outros tenham menos medo e mais atenção diante do espetáculo. Diante da cura.

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domingo, maio 16, 2004

 
Sobre os recessos

Depois de quase um mês de descanso, este espaço volta à ativa. Nesse interím, perguntaram alguns: "Por que o blog está parado? Você não tem compromisso com os leitores do Desdém?" Outros foram além: "Por acaso você comprou um livro dos Hare Krishna e foi passar férias no Tibete?" Até o Pastor Dedini apelou: "Sabe quanto foi o jogo do Curintia ontém à noite?"

Invariavelmente, respondi, em arroubos apáticos por uma comparação genuína que me havia vindo à mente. "Eu não gosto da Suíça. Lá já está tudo pronto. Eu só gosto daquilo que está por fazer. Logo, desdenhei do Desdém e o deixei por fazer. Assim, posso continuar gostando dele."

A maioria não entendeu o que eu quis dizer. Tampouco me importei em explicar. Só os confundi mais, citando o exemplo daquilo que os parlamentares azem em Brasília o ano inteiro. Presta atenção: os caras deixam o Congresso às moscas, mas existe algum parlamentar que queira ficar fora dele?

Já viu um algum deles dizer "Olha, eu não curto muito aqui, não. Sinceramente achei que ia ser outra coisa, uma galerinha mais descolada, pra fazer guerra de papel durante as votações, ficar depois do expediente pra jogar conversa fora... Eu vim mesmo pra fazer amigos. Da próxima vez, não vou nem me candidatar."

Não. Afinal, para que servem as faltas e os recessos senão para sentir falta do gabinete e do plenário? Para que ficar o tempo todo presente em uma sessão sem aproveitar o ócio, componente primordial na composição de um homem público?

Pois bem. O mesmo se aplica a este espaço. Como é que as pessoas teriam saudade dessas linhas se a atualização fosse diária, frenética? Como é que elas poderiam assumir um compromisso com o desprezo à instantaneidade, se tiverem de passar por um constante processo de adequação às normais atuais? Por isso, faço minha parte. E quem discordar, que se dirija ao consulado da Suíça.

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