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terça-feira, fevereiro 17, 2004

 
ELE PECA PORQUE NINGUÉM O AJUDA

O homem aflito sofre. Acha que está sempre a pecar, a merecer castigos, a conquistar inimigos. Para ele, na vida, qualquer coisa que faça se define por um ato muito mau, nefasto, cruel... Não adianta rezar, meditar, prometer, sua aflição, a cada dia, a cada passo, a cada respiração, cresce e atemoriza. Pior que isso – ele não sabia definir o significado do verbo pecar. Definições há, aos montes, uns dizem que é sexo, outros a nudez. Outros falam que qualquer prazer é crime condenabilíssimo. Há quem atribua ao corpo a fonte de pecados e desgraças, ou a qualquer tipo de desregramento – mesma coisa que dizer, sair do normal ou do aconselhável pela hipocrisia social. Para a falta de definição, inventaram até uma lista com sete proibições.

Mas foi vivendo. E encontrou o homem sem alma, que parecia saber o que era diversão. Parecia que era calmo, nele não havia marcas de remorso. Davam-se bem, até o dia em que o homem aflito foi procurá-lo para se confessar. Sucedeu-se a seguinte conversa:

Homem aflito – Eu sofro, muito. Tenho um sentimento de culpa permanente, quanto mais me sinto purificado, mais sinto que posso achar a prevaricação ou estou pecando.
Homem sem alma – Que neurose. Para quê, isso? Relaxa, não tem por que na vida ficar assim.
Homem aflito – Até sei, mas o que se pode fazer, é assim que me sinto. Parece que tenho de pagar um infindável tributo por viver. Pelo simples fato de estar vivo.
Homem sem alma – Pois sinto o contrário: é a vida que me deve. Eu deveria era aproveitar mais, zoar mais, sinto-me um santo aqui. Se Deus existe, deveria me ajudar nesse sentido: a aproveitar mais o que há de bom, o mulherio, o etilismo, o tabagismo, o arrivismo...
Homem aflito – Queria ser assim, saber pecar.
Homem sem alma – Vou contar então o meu segredo. Sabe por que eu aproveito sem remorso? Porque até hoje ninguém, escutou, ninguém pôde definir, com clareza e persuasão verdadeira, o que é um pecado. Se não sei o que é pecado, como vou pecar? Como vou me castigar ou ser castigado por algo que não existe, pois falta-lhe uma definição decente? Estou permanentemente absolvido. Por isso faço aquilo que me der na telha. Tente você.
Homem aflito – Nunca ninguém me deu esse interessante conselho.

Depois da conversa, o homem aflito resolveu tentar ser como o seu conselheiro. Foi e fez tudo o que nunca fizera, ao exagero, sem pejo. Experimentou de tudo. Passados três meses, arrependera-se. Davam-lhe insônia e tremedeiras. Medrava o seu receio, perdera o prumo. Daí a um mês estava morto. O homem sem alma nem foi ao velório, nem ao enterro. Viveu longos anos, apesar do cigarro, do uísque, da mulherada da vida, da sacanagem profissionalmente promovida, da imaginação pervertida. Nunca se arrependeu.


Falta que eu te expurgo :


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