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sexta-feira, abril 02, 2004

 
Mais um almofadinha na vida

A vida é fantástica, dá voltas e faz o homem bom tornar-se mau. Ele passou sua curta vida a proclamar que nunca entraria num jogo de aparência para camuflar o que é e pensa. Mas o lugar onde vive o levou a engolir o que dissera. Arrumou um emprego, que lhe exige a visita diária ao mundo do almofadismo. Empertigado e janota, percebeu que os outros o respeitavam mais, ele era tido como alguém sério. Acreditou.

Está fazendo as vezes de assessor de imprensa em uma empresa de RH. Lá fica arrepiado de meia em meia hora. O cara é sensível e ingênuo. A vida bate na cara de quem é assim. Nunca se viu um rosto tão vermelho e agredido. Um dia, antes de ficar sem tempo para nada, ele aprendeu o que era ética. Achava que em tudo devia ter ética, até no uso do fio dental. Até com a namorada, a quem devota uma fidelidade mais forte que um papa-hóstias em dia de Paixão de Cristo ou Natal.
Ética, agora, para ele é mentir. Ele se pegou mentindo – porque isso faz parte da gestão corporativa. Da governança empresarial, à qual teve de curvar-se para ganhar seu mísero salário. Quanto mais desemprego, mais joelhos que estão empregados encostam-se ao chão.

A convivência com aéticos faz milagres. Ele convive o dia inteiro com psicólogas que falam até a náusea chavões insuportáveis, nascidos na prática desenfreada do anglicismo e da baboseira. Somente porque sabem algumas palavrinhas vazias de sentido, julgam os outros. Para uma pessoa ser recrutada, julga-se o para mim fazer, em vez de se julgarem traços do caráter. É incrível, vale mais a pena hoje ser oportunista (ou dinâmico, ou ambicioso, ou...) do que falar errado segundo o padrão arbitrário e culto da língua.

Elas têm um ícone, um ícone às avessas. O judas delas é a Solange do BBB 4, conhecida por exaltar a própria ignorância. Falam que ela é burra, porque não sabe falar. O problema é que elas também não – só sabem exprimir um discurso previamente concebido, repetido à exaustão, dir-se-ia que o vocabulário não passa de vinte palavras. Sinal dos tempos.

Fala-se de sedução também: seduzir o cliente – o paspalho, para ser mais real e franco – com as palavras; aliciar com palavras. Palavras são cocô quando esvaziadas de sentido e usadas para vender uma coisa que não existe. E unzinhos vêm falar de ética. Uma estagiária reclamou da vendedora que não quis o serviço por ela oferecido – “é uma burra, uma vaca, vai ficar ganhando trezentos reais o resto da vida”. A estagiária ganha apenas R$ 600,00. Com direito a vales-transporte. E anda de carro só para esnobar. Quer dizer, para vir de casa, que é longe. O que importa: trezentos reais a mais habilitam uma pessoa a massacrar outra.

O almofadinha, que a tudo vê e sente, além preocupar-se com o aprumo no vestir, começou a ser preconceituoso. Reclama do cheiro do proletário no ônibus e no metrô. Já exigiu dos pais a compra de um carro, porque é chique andar de carro, ainda que o trânsito nunca permita ficar na terceira marcha por um tempinho que seja. Os outros xinga, baixinho, de pobres e de burros. E foi currado. E tomou naquilo que é responsável por guindar sua honra aos mais altos patamares. Aos patamares do homem que tem moral e se faz respeitar. Em casa pensou na seguinte coisa (seu pensamento já está formatado na narrativa – narrativa? – de livro de auto-ajuda). “Adote a linguagem e o comportamento dos recursos humanos e seja currado, esta deveria ser a propaganda”. Nos carros, o seguinte adesivo: sou RH, fui currado. Seja você também. RH, um bando de currados vocacionais, que querem ser currados, mas que não o admitem.

Falta que eu te expurgo :

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