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domingo, março 13, 2005

 
A Day in the Life

Acordo já com certo atraso - o despertador comprado de camelô não merece mesmo confiança - e corro para um banho igualmente veloz. Digo um bom dia apenas oficial a quem está na casa, depois de ver no espelho meu rosto como o de um piloto de trem fantasma. Apenas mordidas implacáveis em um pão com presunto amainam um mal humor digno de um afiliado do Prona. Azar do sanduíche. Azar dele por todos os amores mal fadados, todas as idéias inconclusas e todos os textos que não foram escritos.

Com o jornal desorganizado e amassado na mochila - indistinto de apostilas, contratos, documentos e agendas - uma cotovelada acidental de um senhor no meu umbigo e R$3,80 mais pobre, chego mais disposto à faculdade que frequento pelo quarto ano. Vou à faculdade para ver a todos. Para vê-la enrubescer. Vou ainda que a lá não pertença.

Foi o que me disseram colegas da mal cheirosa e depredada escola de segundo grau em que sobrevivi até adentrar o ensino superior. Mas não: não há crise de identidade. Sem ter nem de matar pensamentos sobre algum fim. Sem alegar legítima defesa. Silêncio de reflexo, sem reflexão e com ímpeto. Despertencimento.

Lembro dos elementos-colegas do primeiro grau. Teriam dito o mesmo, caso ainda os visse. Exceto por aqueles que estão mortos ou os outros tantos presos. Apenas talvez. No dia anterior, Fernando Danadio estava no ônibus que havia tomado. Tinham se passado quase 10 anos do dia em que reclamou comigo. Incomodava a ele o fato de que eu comprava 10 pães, e ele só trazia 5 da padaria, apesar de termos o mesmo número de habitantes em casa.

Recomendei-lhe paciência e disciplina. Ele preferiu o jockey club. Depois, escolheu a bebida, o tráfico de cocaína. Ficou preso por 4 anos. Nunca fui visitá-lo na cadeia.

Lembro dele nas três horas e meia que passo na escola. Ali eu abasteço meu arcabouço intelectual de algumas novas e boas idéias. Também ganho toneladas de visões distorcidas, típicas de gente que pensa o mundo no eixo Morumbi-Paulista-Higienópolis, ganho toneladas. Gente que nunca vai entender o que vive Fernando Danadio. Gente que há muito já teria se esquecido dele.

Sem querer, me ajudam todos a estabelecer referenciais sobre o limite da minha própria imbecilidade. Gente que, sem querer, copia Pascal: não amamos pessoas, mas sim qualidades. Ou a falta delas. Discursos identitários tão vazios como qualquer outro? Melhor não atrasar para o trabalho.

Depois de 1h30 de experiência antropológica no ônibus Terminal Capelinha ("Um lugar com esse nome não pode ser legal", foi o pensamento que me abateu ao vê-lo pela primeira vez), dou início a uma jornada de trabalho de 7 horas para ajudar a enriquecer ainda mais o Deus Mercado.

Ele é quase onipresente nas conversas do local de trabalho onde gasto minhas tardes e começos de noite. Memórias rubras, incandescentes, me tomam alguns minutos e me levam ao erro. Repetidamente. Não vê, o erro. Não percebe, ou finge não perceber. Indolência e dissimulação.

Docemente, me disponho a viver em uma pequena enganação, etérea e de ótimo grado. Equívoco ideal e perpétuo, por pura coerência. Por ver nela, nisso, a virtude. Faz aquele texto sobre o presidente do Banco Central, alguém grita. Saio, pontualmente, às 20h03 minutos.

O sono, ao contrário do meu despertador, não atrasa. Começa no ônibus de volta para casa. Assim que ponho os pés nela, volto a me lembrar de Pascal: não amamos pessoas, amamos qualidades. Por que me bate esse pensamento? Um desânimo súbito me faz desistir de estender a noite. Não será percebido. Não será lido. Não será inferido. Será meramente comunicado por não ser. Seria esse um amor pela interpretação, perguntaria um pascaliano. Responderia com uma piada protocolar. Aborreço-me.

Dou-me o prazo de 20 minutos para comer e pensar no fim de semana, como todo bom e obediente operário. Qualidade em desuso, mas insisto em amá-la. Por que me rebate esse pensamento? Faço a mim mesmo a proposta indecente de me levar para a cama por 8 horas completas de sono, como se fora um sonho de consumo. Ameaço contradizer Pascal. Mas acabo por acolher o sono, sem pestanejar.

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