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quinta-feira, junho 16, 2005

 
Texto de gaveta sobre um dia em que poderia ter me embebedado

Sempre disseram que eu dificilmente perco o controle. É verdade isso. Se assim não fosse, já teria me embebedado de álcool pela primeira vez na vida. Especialmente em um dia como este. Pena que essa tentação jamais tenha movido minha vontade um milimetro sequer. Prefiro me embriagar de asco, do mais profundo asco.

Eu, um rapaz controlado, poderia ter gritado com fúria à vizinhança. “Quem é esse idiota?, perguntaria o senhor meia-idade-trepa-aos-sábados à senhora meia-idade-finge-que-goza-também-aos-sábados-o-que-não-acontece-nas-tardes-de-quarta-feira. “É moleque na rua, me deixa dormir.” Não, senhora, não sou moleque. Isso é tudo víscera. E o que fala alto é o asco.

O diabo é esse controle, que raramente deixo de lado. Nunca pisaria na casa dela de surpresa. Dizer-lhe que o vômito domina a minha boca, que tanto já quis a dela. Sem me tocar, ela continua a sujar minha alma, candidamente. Urro de repulsa, barrada por um travesseiro. Saliva o asco.

Não relatei o controle que tive ao vê-la entrelaçada a outro corpo tempos atrás. Tampouco sobre o oportuno mau súbito que logo em seguida me rendeu. Descartei descrever a temperatura daqueles pulsos gélidos, disfarçadamente vivos. Refutei expôr-lhe o que há na epiderme que não vi roçar a dela. No esôfago, me tocava o asco.

Um odor forte de vazio vai preenchendo o pequeno quarto. Não mais do que 15 metros quadrados de lembranças, tempo, planos, confidências e pensamentos perdidos. O nariz tenta controlar a memória da comida ruim que embalava as conversas de fim de noite. Hoje, ela cheira somente a asco.

Em labirintos de pedra e gesso, ouço-a baixo. Liberto de lá, acontece o mesmo, o tempo todo. Mais perto, mais longe. Mais perto, mais perto. Mais longe, mais longe. Subitamente perto. Subitamente longe. Escuto ambivalências despretensiosamente escolhidas a dedo. Me controlo para não perguntar. Escuto canto de sereia e silêncio com atenção. Agora, tudo já soa a asco.

Para se tornar a aversão da qual tanto precisava, daquelas que beijam a ojeriza, me faltava uma visão. Decidi procurar nos olhos dela. Os ímãs que me faziam refém do controle, a razão mais singular do meu afeto. Desisti. Estava absolutamente certo que ela já não estava na retina. Ela já era um incontrolável dia-a-dia.

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